Vivemos em um tempo em que basta deslizar o dedo na tela para conhecer alguém.
Um toque, um match, uma conversa que começa leve, e logo surge a esperança de que “dessa vez vai ser diferente”.
Mas, para muitos, o encanto inicial logo se mistura com frustração, silêncios, desaparecimentos repentinos e uma sensação difícil de nomear, algo entre o vazio e a dúvida sobre o próprio valor.
Os aplicativos de relacionamento transformaram a forma como nos conectamos, mas também escancararam algo muito mais profundo: a forma como olhamos para nós mesmos.
Nunca foi tão fácil conhecer pessoas, e ainda assim, nunca foi tão comum se sentir sozinho.
A sociedade da conexão e o paradoxo da solidão
Os aplicativos nasceram com a promessa de facilitar encontros, encurtar distâncias e ampliar possibilidades.
E, de fato, fizeram isso. Hoje, um simples toque no celular pode colocar duas pessoas que jamais se cruzariam frente a frente.
Mas essa praticidade também trouxe uma nova lógica para o amor: a da escolha infinita.
Quando tudo está ao alcance de um clique, o laço se fragiliza. As relações passam a ser rápidas, voláteis, descartáveis.
E nessa velocidade, a profundidade se perde.
Começamos a medir o valor das interações pelo número de mensagens, curtidas ou tempo de resposta.
A ausência do outro vira um termômetro de quanto valemos.
A solidão, nesse contexto, não é mais a falta de gente. É a falta de conexão genuína — com o outro e consigo mesmo.
A régua interna que nunca se satisfaz
Muitas pessoas que chegam à terapia após experiências frustrantes em aplicativos trazem uma dor silenciosa: a de se sentir sempre aquém.
São pessoas com uma régua interna de autoavaliação muito alta.
Elas acreditam que precisam ser impecáveis (no corpo, na conversa, nas atitudes) para serem escolhidas.
Quando não são, interpretam como falha pessoal.
O que os aplicativos fazem é amplificar essa régua.
Cada silêncio vira rejeição.
Cada “visto e não respondido” vira prova de desinteresse.
E a mente começa a repetir um padrão: “Tem algo errado comigo.”
Não é o aplicativo em si que causa sofrimento, mas o que ele desperta — as comparações, a autocrítica, o medo de não ser suficiente.
A pessoa começa a se moldar para agradar, ajusta a foto, o texto, a forma de se expressar.
E sem perceber, vai se afastando de quem é.
O desejo de ser amada vira esforço constante para caber no olhar do outro.
Amar na era da performance
Vivemos em uma sociedade que transformou o amor em vitrine.
Tudo precisa parecer bonito, interessante e bem resolvido.
Há uma pressão silenciosa para estar bem, ser desejável e mostrar isso.
As redes sociais e os aplicativos nos colocam em exposição constante, e o olhar do outro passa a ser medida de valor.
O amor, antes visto como encontro, se tornou mais uma forma de desempenho.
E o preço disso é alto.
Porque quanto mais tentamos provar que somos bons o bastante, mais distantes ficamos da experiência autêntica de se permitir ser quem se é.
A terapia olha para isso com cuidado.
Ela nos ajuda a entender que o amor não é um palco onde precisamos performar perfeição.
É um espaço de encontro entre duas vulnerabilidades dispostas a se reconhecer.
As mudanças entre gerações e a nova forma de amar
Os relacionamentos de hoje são marcados por uma liberdade que antes não existia.
Podemos escolher com quem queremos estar, quando e por quanto tempo.
Mas junto dessa liberdade veio também o peso da instabilidade.
Nossos avós viviam amores sustentados por convenções sociais.
Hoje, vivemos amores sustentados pela vontade — e isso é lindo, mas também frágil.
A facilidade de começar uma nova história fez com que muitos perdessem a paciência para permanecer.
Ao menor sinal de desconforto, surge a tentação de deslizar a tela e procurar “algo melhor”.
O problema é que vínculos profundos não nascem da pressa.
Eles precisam de tempo, de imperfeição, de presença.
Mas estamos acostumados à velocidade — e o amor não acompanha o ritmo das notificações.
As crenças que alimentam o sofrimento
A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) nos ajuda a compreender que o sofrimento emocional muitas vezes nasce de crenças enraizadas.
Elas são como lentes através das quais enxergamos o mundo e a nós mesmos.
Algumas das mais comuns nesse contexto são:
- “Se alguém não se interessa por mim, é porque eu não tenho valor.”
- “Eu preciso ser perfeito para ser amado.”
- “Todos conseguem se relacionar, menos eu.”
- “Se me rejeitaram, é porque há algo errado comigo.”
Esses pensamentos soam verdadeiros, mas distorcem a realidade.
Nem toda rejeição é pessoal.
Nem toda ausência é desinteresse.
E o fato de uma relação não dar certo não significa fracasso.
Na terapia, trabalhamos para identificar essas crenças e substituí-las por pensamentos mais realistas e acolhedores.
Como, por exemplo:
“Nem todo mundo vai se conectar comigo — e está tudo bem.”
“Meu valor não depende da validação de ninguém.”
“Eu posso ser suficiente, mesmo quando o outro não me escolhe.”
Essas mudanças de pensamento ajudam a reduzir a autocrítica e fortalecem a autoestima.
O vazio entre um match e outro
Há algo curioso em muitos relatos: a sensação de cansaço emocional.
Depois de tantas conversas que não viram encontro, tantos começos sem continuidade, o entusiasmo inicial se transforma em apatia.
O coração parece saturado.
O vazio que surge não é pela falta de companhia, mas pela ausência de sentido nas interações.
O excesso de opções gera dispersão.
E o resultado é uma busca infinita por algo que parece estar sempre um pouco mais adiante.
É nesse ponto que a terapia pode se tornar um espaço de respiro.
Um lugar onde o olhar se volta para dentro, não para fora.
Onde o foco deixa de ser “por que ninguém fica?” e passa a ser “por que eu me sinto assim?”.
Essa mudança de pergunta abre espaço para reconstruir o amor-próprio, aquele que sustenta o amor pelo outro.
Como a terapia pode ajudar
A TCC oferece recursos práticos e profundos para lidar com o sofrimento ligado aos relacionamentos e à autocrítica.
Entre eles:
1. Identificação de padrões de pensamento:
Reconhecer pensamentos automáticos negativos e questionar a veracidade deles.
2. Reestruturação cognitiva:
Aprender a enxergar as situações de forma mais equilibrada, reduzindo o peso da rejeição.
3. Fortalecimento da autoestima:
Desenvolver uma visão interna mais amorosa, capaz de reconhecer qualidades sem depender da aprovação alheia.
4. Treino de autocompaixão:
Substituir a autocrítica por uma postura mais gentil e compreensiva diante de si.
5. Uso consciente da tecnologia:
Refletir sobre como e por que se utiliza os aplicativos, resgatando o controle sobre o próprio comportamento.
A terapia não tem como objetivo afastar o sofrimento de forma mágica, mas ajudar a compreendê-lo e transformá-lo em crescimento.
Mitos e verdades sobre os aplicativos de relacionamento
Mito: Relacionamentos que começam em aplicativos não duram.
Verdade: O que determina a duração de uma relação é a qualidade do vínculo, não o lugar onde começou.
Mito: Usar aplicativo é sinal de carência.
Verdade: Buscar conexão é parte natural da experiência humana. O problema não é buscar, é se perder no processo.
Mito: Se alguém não responde, é porque não gostou de mim.
Verdade: Nem sempre o outro está disponível emocionalmente. Às vezes, o silêncio fala mais sobre o momento dele do que sobre você.
Reaprendendo a amar com presença
O amor não precisa ser urgente.
Ele não exige perfeição, apenas presença.
E presença não se constrói em meio à comparação, mas na aceitação de quem se é.
Quando conseguimos olhar para nós com mais compaixão, deixamos de buscar no outro a validação que nos falta.
E é justamente aí que o amor começa a ter espaço para florescer de forma saudável.
Os aplicativos podem continuar sendo um meio de encontro — desde que não sejam o espelho onde buscamos confirmar o próprio valor.
Amar, no fim das contas, é se permitir ser visto de verdade.
E isso só é possível quando aprendemos a nos ver primeiro.
Reflexão final
O amor contemporâneo é um reflexo da sociedade que criamos: imediatista, exigente, visual.
Mas por trás das telas, continuam existindo as mesmas necessidades de sempre — ser aceito, ser compreendido, ser amado.
Talvez o maior desafio da nossa geração não seja encontrar alguém, mas permanecer inteiro em meio a tantas possibilidades de se perder.
A tecnologia mudou a forma de amar, mas não muda a essência do amor.
Enquanto buscarmos o outro para preencher o que falta em nós, viveremos ciclos de frustração.
Mas quando aprendemos a nos acolher, o amor deixa de ser busca e passa a ser encontro.
E é nesse ponto que o amor (o real, o que constrói e acalma) finalmente começa.
Créditos autorais: Kamila Gama, Psicóloga Clínica.
